sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Marte

Enquanto as amigas gritavam que iriam sumir no mundo, ela só pensava em sumir do mundo.
Tinha a terrível mania de complicar as coisas e, às vezes, desejava apenas ser o criado-mudo feliz de seu quarto fechado.
Um dia, leu a notícia: "Abertas as inscrições para quem quiser morar no planeta Marte".
Então ela, de fato, poderia sumir do mundo? Dobrou o pedaço de jornal em três partes e o colocou com cuidado embaixo do travesseiro.
Começou a se planejar.
Seria uma viagem sem volta, dizia a notícia.
Ótimo, ela pensou.
A ocupação do novo planeta está prevista para iniciar em 2023, dizia a notícia.
Fez a conta. Ainda estaria relativamente jovem em 2023.
Entrou no site de inscrição. Bastante detalhado, solicitava muitas informações a respeito de biotipo e estado de saúde. Fez o possível para responder de forma verdadeira, apesar de omitir algumas questões e enfatizar outras. "Como em um currículo", disse em voz alta na tentativa de se justificar. Aliás, era assim mesmo que estava encarando a inscrição: iria enviar um currículo para, quem sabe, ser selecionada a realizar o maior sonho de sua vida.
A campainha tocou.
Ela não quis atender.
De repente, as coisas deste mundo lhe pareceram fugazes demais.
Terminou a inscrição satisfeita por achar que preenchia todos os requisitos de uma moradora de Marte. E foi se deitar. Não sem antes dar uma boa encarada em seu criado-mudo e desejar-lhe boa noite.
Em dez anos estaria em outro planeta. Acreditou nisso.
E, até lá, viveria aqui como uma marciana. Assim, tentando desvendar um mundo ao qual, na verdade, nunca pertenceu.
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quinta-feira, 1 de agosto de 2013

O telefonema

Nunca esperou por uma ligação depois da virada do ano. Afinal, quem importava estava junto e, quem estava longe, ou já não estava mais ou achava não importar muito.
O ano estava indo embora e tinha sido especial. Nem tanto pelos acontecimentos, mas pelas pessoas que havia conhecido. Pessoas, não. Pessoa. 
Não era muito boa em conhecer pessoas e estava bem satisfeita por ter conhecido uma.
"Posso ligar pra você depois de meia-noite?", foi a pergunta da amiga.
E, se achava impossível se afeiçoar mais a alguém que há pouco tempo lhe era desconhecida, nesse momento o impossível se fez possível. "Pode!"
Meia-noite.
Beijou o marido, os filhos, agradeceu pelo ano ido e deu boas vindas ao que acabava de chegar.
E o telefone tocou. 
Tão bom quando os combinados são cumpridos!
Recebeu emocionada o desejo de um ano novo feliz.
E desejou como nunca ser feliz. 
Porque a vida, essa que já a havia sacaneado tanto, parecia ter finalmente dado uma trégua.
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