quarta-feira, 24 de abril de 2013

Sobre crianças e balões


Acho bem emocionante ver uma criança segurando um balão. Porque logo ele estoura. Porque logo ela o perde. Porque é só uma bola cheia de ar. Porque é só.
E quando ele escapa da mão da criança e sai voando... não sei de quem sinto mais pena. Se da criança ou do balão.
Quando morei no Chile, quase todos os dias buscava a pé meu filho na escola. Num desses dias, ele saiu de lá carregando um balão vermelho.
Um balão vermelho! Verdadeiro clássico dos balões.
Lembro-me de querer amarrar o balão no carrinho de bebê, mas meu filho queria ele mesmo segurá-lo. Deve ser bom para uma criança de três anos ter algo sob sua inteira responsabilidade. E meu filho queria ter o balão. E eu, com um aperto no coração que só as mães com crianças segurando balões sentem, deixei.
Lembro-me também de que lhe pedi muito que o segurasse firme. Estava ventando e os ventos carregam tanta coisa... principalmente balões.
Quando estávamos quase chegando em casa, ele o soltou. Talvez sua ideia fosse justamente esta: ver o balão voar. Mas, quando viu que voava mesmo e que o vento é implacável em levar (ventos levam, meu filho. Eu avisei tanto! Que diabo de expressão mentirosa esta "que bons ventos o trazem"!), ele chorou. Porque não queria perder o balão vermelho.
Eu não queria perder aquele balão vermelho!
Só que voou.
Não tão alto que eu não pudesse correr atrás para tentar alcançá-lo.
Larguei o carrinho e a criança na calçada. E corri atrás do balão.
Meu filho chorava tanto! (Hoje já nem sei mais se foi por ter perdido o balão ou por assistir à mãe correr entre os carros, numa avenida movimentada, atrás de um balão vermelho).
Não consigo explicar muito bem o que se passou então. Sei que os carros foram diminuindo a velocidade e um deles parou. De dentro, saiu um homem. Que largou seu carro parado no meio da avenida e alcançou o balão para mim.
E, às vezes, me pego tentando lembrar o rosto desse homem que salvou o nosso balão vermelho.
O meu balão vermelho.
Mas eu não lembro... E me dá uma tristeza!
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segunda-feira, 22 de abril de 2013

Um mês e meio

Tinha lido que uma pessoa passa em torno de 24 anos da vida dormindo. Outros 4 anos são gastos em filas. Tomando banho e fazendo sexo: 3 meses.
Pegou uma calculadora e começou a fazer contas.
Até gostava das repetições do dia a dia e tal, mas aquilo a assustou.
Sabia que a rotina era um luxo infalivelmente breve, mas constatar em números as repetições que ainda lhe eram de direito não foi muito agradável.
Ela já havia dormido metade do tempo que dormiria até sua morte. Das filas não quis saber e quase implorou para chegar logo aos 60 e, quiçá, se livrar delas.
Banho e sexo: apenas um mês e meio até morrer. Um-mês-e-meio!
Em breve entraria em uma contagem regressiva.
Jogou fora as pílulas para dormir (quem precisa delas quando se tem uma estatística dessa?), tomou um longo e quente banho e chamou o marido.
Um mês e meio passa muito rápido.
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quinta-feira, 18 de abril de 2013

Especialidade: morrer de


Era especialista em morrer: morria de amor, morria de saudade, morria de raiva, morria de fome, morria de culpa, morria de dó. Morria, enfim.
Porque tudo para ela era extremo e, se não fosse, não havia razão de ser. E era justamente na morte que ela enxergava a possibilidade da vida.
Foi então que viu aquela plaquinha na porta, escrita com letra torta e canetinha barata: “Não diga nada. Não pergunte nada. A cigana irá lhe contar tudo”.
Se tinha outra coisa da qual também morria era curiosidade. E ela entrou. Talvez tenha ficado lá dentro uns trinta minutos. O que ouviu, nunca ninguém irá saber.
Só o que se soube depois foi que, numa noite de céu bem estrelado, depois de vestir sua camisola transparente, escovar os dentes e usar o fio dental, ela pegou alguns de seus livros preferidos, sua sacola de cartas e saiu. Descalça.
E morrendo de rir.
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Noite Estrelada, V. Van Gogh

segunda-feira, 8 de abril de 2013

Lá em Badarve

Existe um certo mistério nas pessoas que vão vivendo a vida sem pensar muito, sem complicar muito. Vão fazendo o que têm de fazer e pronto.
Confesso que tenho um pouco de inveja dessas pessoas.
Quando criança, costumava passar alguns dias do ano na fazenda de uma amiga, no interior de Minas. Uma das coisas de que mais gostava era visitar a casa do caseiro dessa fazenda. Gostava porque ele tinha vários porquinhos, porque as galinhas do quintal sempre tinham muitos pintinhos, porque sempre havia várias crianças felizes e barrigudinhas brincando na terra e, principalmente, porque ele sempre sabia onde estavam as coisas que queríamos para brincar. Uma dessas coisas era uma corda grande e grossa, que iríamos usar para capturar um bezerro. O Sr. Caseiro, então, nos respondeu sem tirar os olhos do fumo que enrolava: "Ah, tá lá em Badarve".
Badarve. Que lugar seria esse, santodeus.
Na minha cabecinha de vento, Badarve logo se transformou no lugar mais legal do mundo. Uma espécie de Pasárgada das crianças e, ai!, como eu quis ir embora pra Badarve.
Não fui.
Porque logo descobri que Badarve era logo ali, embaixo da árvore. E, então, já nem teve mais graça achar a corda e eu já nem queria mais capturar o bezerro.
Mas hoje, quando estou bem triste, penso na minha Badarve que nunca existiu. E me lembro do homem que, sem tirar os olhos do fumo, ia vivendo sua vida e fazendo o que tinha de fazer. Assim, sem nem se preocupar com além de seu quintal, de suas galinhas, de seus porquinhos e de suas crianças barrigudinhas.
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quarta-feira, 3 de abril de 2013

Volte duas casas. E espere a próxima rodada.

Um dos meus jogos preferidos era o Jogo da Vida. Mas jogá-lo comigo não devia ser muito desafiante: enquanto todos tinham como objetivo chegar ao final com o máximo de dinheiro possível, eu só queria cumprir o percurso e ser feliz. Então, sempre que havia uma bifurcação em que eu pudesse escolher entre me formar e ter um filho, obviamente eu escolhia ter um filho (meu ideal de felicidade... vai vendo). E adorava encher meu carrinho vermelho de crianças rosas e azuis.
E quando eu tinha que visitar uma tia no interior e ficar uma rodada sem jogar? Todos riam da minha cara. Mas eu nem ligava, porque o que eu queria mesmo era imaginar meus filhos - que a essa altura do campeonato já tinham nomes e idades - correndo pelo sítio dessa tia, brincando na terra e subindo em árvores.
Hoje, fico pensando no jogo da minha vida. E acho que continua sendo meu jogo preferido, embora às vezes me sinta um pouco cansada de jogá-lo.
Gosto de imaginar em que parte do tabuleiro estou: já devo ter passado da metade e não tenho um carrinho vermelho cheio de crianças. Mas tenho um carrinho preto com duas delas, as quais me enchem de alegrias e desafios.
E, apesar de ter avançado bastante, não ligo se, de repente, eu tiver de voltar duas casas e esperar a próxima rodada. Afinal, continuo apenas querendo cumprir o percurso... E ser feliz.
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terça-feira, 2 de abril de 2013

As cartas que nunca li

É quando escrevo que mais me faço ser, que sinto melhor minha existência, que me encontro. Ou que me perco de vez, quem sabe.
Gosto de escrever para mim: tenho caderno de tudo o que se possa imaginar; tenho diários de viagem, tenho blocos de anotações…
Gosto de escrever para além de mim: tenho blog, tenho tumblr… e não faço ideia de para onde meus textos vão.
Gosto de escrever para os outros: cartas que mando, cartas que gostaria de mandar, cartas.
E tenho mania de fazer listas: do que comi, do que quero ler, do que vivi, do que ainda quero viver, do que não quero nem ver. Lista de amigos, lista de pessoas irritantes, lista de nomes - de filhos que nunca terei -, lista do que listar.

Susan Sontag também gostava muito de escrever (e adorava uma listinha boba, vejam só). Ela escreveu em cadernos durante muitos anos: dos quinze aos, sei lá, setenta anos. Depois que morreu, seu filho resolveu publicar seus cadernos: são os Diários de Susan Sontag.
São três volumes. No Brasil só tem o primeiro, por enquanto.


Amo ler diários e biografias. Mas ler os Diários de SS me causou um certo mal estar. Os escritos, ainda que editados por seu filho, são tão íntimos! Fiquei imaginando se, algum dia, Sontag desejou vê-los impressos e publicados. E me deu um nó no peito só de pensar que não.
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Outro dia peguei uma caixa de sapato toda fechada com fita crepe. Dentro da caixa há cartas e mais cartas de minha mãe para meu pai, desde o tempo de namoro (meados de 1960) até o casamento (1969). Sempre soube da existência dessa caixa, mas nunca tive coragem de abri-la.
Uma caixa com uma marca de sapato que já nem existe mais, cerrada com fita crepe amarelada e cheia de carta!
Um verdadeiro tesouro.
Não sei se um dia minha mãe imaginou que eu fosse dar tanto valor a suas cartas de amor.
E me dá um nó no peito só de pensar que não…



O vendedor de flores

Todos os dias eu o vejo no semáforo: o vendedor de flores.
Carrega vários pequenos buquês de rosas e usa terno. Um terno preto, sob sol ou sob chuva, numa esquina bem movimentada do centro da cidade.
Nunca vi ninguém comprar um daqueles buquês. Eu mesma nunca comprei, embora sinta uma vontade imensa de abrir o vidro do carro e chamá-lo. Não sei por quê, já que não desejo as flores. E também não desejo o vendedor.
Talvez apenas para convidá-lo a tirar aquele paletó, tomar um café e saber um pouco mais daquele senhor que carrega, além das flores nas mãos, um sorriso no rosto.
Acho um verdadeiro mistério o sorriso de algumas pessoas. Sorriso verdadeiro, que vem da alma. Poucos o têm.
Mas o tem o vendedor de flores. E como gosto de olhá-lo ali, tentando vender seus buquês enquanto o sinal não abre.
E penso que, um dia, eu deva comprar um.
Porque assim, quem sabe, eu possa retribuir ao homem que vende flores e distribui sorrisos.
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tom roberts:  going home 1889.

A culpa é do Fidel!


Eu sempre quis ser filha de pais revolucionários, engajados políticos e tal. Acho que porque meus pais nunca foram engajados em nada e sempre pensaram em política como a maioria das pessoas pensa: ou seja, eles não pensavam muito.

Nas eleições de 1989, resolvi ser uma revolucionária e engajada política, mesmo estando longe de poder votar e sem nem saber bem o que tais coisas representavam.
Arrumei vários adesivos, botons e santinhos do Lula e passava o dia com eles colados na roupa, cantando o jingle "Lula-lá/ brilha uma estrela!".
Isso irritava meus pais, que iam votar no Collor e olhavam para meu posicionamento político com grande desdém.

Mas vê-los irritados me fazia acreditar que realmente eu estava sendo super revolucionária...
Nunca fui revolucionária.
Nem engajada política.
A última vez que saí gritando pelas ruas foi em 1992, no movimento dos Caras-pintadas para o impeachment do então presidente Fernando Collor.
(Hoje, para dizer a verdade, nem sinto tanto orgulho de ter feito parte de um movimento tão manipulado...)

Mas, e se realmente eu tivesse sido filha de pais revolucionários?

Anna tem 9 anos, mora em Paris, leva uma vida bem confortável, estuda em colégio católico e sonha em ser princesa.
O ano é 1970.
Porém, tudo muda para a menina quando seus pais vão para o Chile e resolvem se engajar na luta política de Salvador Allende.
Sua mãe, que era escritora da revista Marie Claire (símbolo da elite francesa), decide escrever um livro feminista sobre o direito das mulheres ao aborto.
A família de Anna se muda para um pequeno apartamento, a menina passa a dividir o quarto com seu irmão mais novo e sua casa vive cheia de "homens barbudos".
Um verdadeiro pesadelo para uma criança que só queria ser princesa...

"A culpa é do Fidel!" é um filme lindo, sensível e divertido, contado sob a perspectiva de uma criança que não entende as mudanças que estão acontecendo em sua vida.
Um filme, aliás, para ser assistido por toda família. Seja porque mostra a importância da solidariedade (e o que é realmente ser solidário), seja porque mostra a questão do direito à escolha ou, simplesmente, porque mostra uma outra compreensão de mundo.

Ser filho de pais comunistas e revolucionários devia mesmo ser muito difícil. Mas, certamente, muito enriquecedor.
E o filme consegue comprovar isso brilhantemente, ainda que apenas nas cenas finais.
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Muito além de banha e farinha


Bonito e desesperador.
Assim eu diria que é o filme "Perfect sense" (ou  "Sentidos do amor", numa tradução bem chinfrim  que lhe deram).
A história é sobre um apocalipse dos mais aterrorizantes ever: uma epidemia faz com que as pessoas vão perdendo, uma a uma, cada um de seus cinco sentidos. O primeiro é o olfato. Depois, o paladar... E assim sucessivamente. Muito intrigante é que, antes de cada perda, há uma explosão de sentimento: tristeza para a perda do olfato, fome incontrolável antes da perda do paladar...
Em meio a essa epidemia há uma história de amor: duas pessoas que, apesar do caos que se estabelece no mundo, tentam se adaptar à vida.
Numa das cenas mais tocantes do filme, quando todos já perderam o olfato e o paladar, um dono de restaurante diz, sentindo-se completamente arruinado: "agora é banha e farinha. Porque é só disso que as pessoas precisam para sobreviver". Mas, a sobrevivência vai muito além de banha e farinha. E, aos poucos, as pessoas vão voltando a frequentar restaurantes apenas para ouvirem o tilintar dos copos e talheres, serem servidas, apreciarem a cor e a textura dos alimentos.
Além da capacidade de adaptação à vida, o filme faz uma relação bem interessante entre os sentidos e a memória. Quantas de nossas lembranças só existem porque as associamos ao cheiro ou ao sabor?
Achei o filme bem filosófico.
Aquele "e a vida continua" - embora todos estejam (estejamos!) caminhando para um fim iminente - é mostrado com maestria e me comoveu bastante.
Em momento algum da história há esperança de um final feliz. Porque não existe final feliz.
E só quem aprende a lidar com isso consegue viver a vida de forma mais plena e, paradoxalmente, mais leve também.



Cada dia mais perto


Há alguns dias terminei de ler o livro do psiquiatra Irvin Yalom, "Cada dia mais perto".
Trata-se do processo terapêutico entre ele e uma paciente, o qual nos é relatado através de escritos que ambos produzem após as sessões.
Não é um livro de ficção.
O processo foi verdadeiro, os escritos são verdadeiros. A única coisa que não é verdadeira é o nome da paciente, por razões óbvias.
Acompanhar, do início ao fim, uma terapia que não era nada fácil para nenhum dos dois (a paciente tem uma dificuldade imensa em se colocar verdadeira e inteiramente nas sessões. Já o dr. Yalom expressa várias vezes sua frustração ao sentir que a terapia não caminha como deveria, que eles dão um passo para frente e dois para trás) me foi bastante interessante.
Entrar em contato com a parte humana de um terapeuta, suas expectativas em relação à terapia, suas decepções e seus pensamentos a respeito da paciente foi, a princípio, constrangedor.
Mas, por outro lado, foi bem bonito ver como o psiquiatra conduziu a terapia de forma sempre consciente, mesmo quando revelava que não sabia muito bem o que estava fazendo ou pretendendo com determinadas ações.
Ele sabia que, no fundo, o processo com essa paciente seria por tentativas. Erros, acertos e vai e vem.
Sua prioridade era ajudar quem ele se propôs a ajudar.
E ele foi em frente com isso, apesar de todas as dificuldades.

"(...) Levantei-me e caminhei até ela, enquanto ainda estava sentada, para tomar sua mão (...). Acho que foi a primeira vez na vida que eu abracei um paciente assim. (...) E então ela saiu do consultório, não como uma personalidade inadequada. Ela saiu como Ginny, e eu sentirei sua falta".

Deve ser bem gratificante quando uma terapia termina assim, com um ponto final.
Ao invés de reticências...
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Os segredos que nos revelam


Todos têm um segredo.
O problema é que, ao tentarmos esconder um fato, tornamo-nos escravos dele.
O filme Revelações (2003) trata disso. Com excelentes atores como Anthony Hopkins, Nicole Kidman, Gary Sinise e Ed Harris, conta sobre um professor universitário (Hopkins) acusado de racismo por usar uma palavra ambígua em sala de aula. Inconformado com a acusação, ele pede demissão.
A trama toda gira em torno dessa demissão, do envolvimento amoroso que acontece um tempo depois entre a personagem de Hopkins e uma faxineira da universidade (N. Kidman), um escritor que decide escrever a história desse professor (Sinese) e o ex-marido da faxineira (Harris).
Por trás dessa trama há, evidentemente, os segredos que as personagens escondem.
Que todos temos nossos segredos não há dúvidas.
A dúvida é se, ao tentarmos dividir o peso de um segredo com alguém, podemos ser um pouco mais livres.
Muitos acham que sim.
Há um site chamado "Postsecret" que publica segredos julgados inconfessáveis por aqueles que os enviam.
O primeiro segredo postado foi "Eu sou um homem negro e só gosto de mulheres brancas".
Depois, coisas como "Eu tenho inveja da minha filha", "Eu odeio o meu trabalho", "As pessoas acham que eu parei de mentir, mas só aprendi a mentir melhor" ou "Só me tornei enfermeira para furtar narcóticos" foram postadas pelo site, o qual faz um enorme sucesso.
Talvez, revelar um segredo possa mesmo deixar aquele que o revela mais leve. Mas, receber um segredo pode ser um fardo para o qual, muitas vezes, quem o recebe não está preparado.
Quando a personagem de Hopkins revela seu segredo à personagem de Nicole Kidman, esta lhe diz "E por que você me escolheu para saber disso?". 
Não há uma resposta para essa questão. 
E eu penso justamente que seja por esse motivo que o site Postsecret faz tanto sucesso: não existe um destinatário certo para o seu segredo. Você apenas o lança na rede na tentativa de se livrar um pouco dele e, quem sabe, ao diluí-lo na imensidão de outros tantos segredos lançados, possa ser menos escravo de sua própria história...
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O sapo que nem teve a chance de virar príncipe


 Eu atropelei um sapo. Foi sem querer, juro.
 Eu gosto de sapos. Até já tive dois sapinhos de estimação. Eles ficavam em um aquário e eram muito bonitinhos. Minha dificuldade era alimentá-los: eles só comiam insetos vivos e eu odeio insetos vivos. Mas eu sempre dava um jeito e eles viveram um tempo comigo.
Até que, um dia, cheguei da escola e eles tinham sumido. Minha mãe me disse que os havia soltado num riacho, para que eles pudessem ser mais felizes. Hoje, desconfio de que ela os jogou na privada, porque nem imagino minha mãe saindo de casa com um aquário na mão atrás de um riacho... E, se bem a conhecia, ela deve ter pensado que jogar na privada era mais ou menos como jogar num riacho.
Eu fiquei bem triste quando meus sapinhos foram embora. E ontem, quando atropelei o sapo, fiquei triste também.
Minha filha logo disse "Ah... e se ele fosse virar um príncipe?".
E meu filho tratou logo de me consolar: "Mas a mamãe já tem um príncipe!".
Eu, ainda triste, disse que poderia ter matado o príncipe de alguém...
E fizemos, nós três dentro do carro, um minuto de silêncio pelo sapo atropelado. Pelo sapo que - assim como tantos outros sapos -  nem teve a chance de virar príncipe.
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Um biscoito, um cigarro e nada mais


Há quem deteste ficar parado no trânsito. Eu gosto. Gosto porque fico encarando as pessoas do carro ao lado - ainda que nem me dê conta disso na hora -, porque posso observar sem pressa a rua, imaginar a vida de quem passa por ela - pela rua e pela própria vida - e posso, sem medo, me perder em meus pensamentos.
E ontem, parada no trânsito, foi um pedinte bastante singular que me trouxe de volta à realidade. Ele se colocava em frente aos carros e fazia um gesto com as mãos, aquele gesto com o polegar e o indicador que significa “um pouquinho”. Eram quatro filas de carros e ele ia andando em zigue-zague, parando em frente a cada um dos veículos. Não insistia, não ia ao vidro do motorista, não dizia nada. Apenas parava e fazia o gesto.
De repente, vi que um dos carros abriu o vidro. A mulher estendeu ao pedinte um pacote de biscoitos. Ele pegou o pacote, tombou-o em sua mão até que lhe caísse um biscoito e devolveu o pacote. Outro carro também abriu o vidro e o motorista lhe estendeu um maço de cigarros. O homem, da mesma maneira, pegou o maço, retirou um cigarro para si e devolveu o restante ao motorista.
Fiquei com vontade de também dividir algo com aquele homem. Mas a única coisa mais de uma que eu tinha no carro eram meus filhos. E não achei uma boa ideia dar um deles para o pedinte. Conformei-me, então, em somente observá-lo.
E ele, com seu biscoito e seu cigarro, sentou-se na calçada e cruzou as pernas. Mordeu pequeno o biscoito e deu uma longa tragada no cigarro. Parecia tão satisfeito. Como se ali, naquele momento, toda sua vida estivesse fazendo sentido. E talvez estivesse mesmo. Porque tinha um biscoito e um cigarro que lhe foram divididos. E, às vezes, tudo o que precisamos na vida é saber que sempre haverá alguém para dividir com a gente. Mesmo que seja um biscoito e um cigarro.
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Yoko Furusho: Children living on the clouds